COMBATE URBANO - Pesadelo do século XXI


Mosul, Iraque – “A Pérola do Norte”, fevereiro/2018.
Operações militares em terreno urbano (MOUT) são definidas, de modo geral, como “todas as (operações) planejadas e desenvolvidas (...) contra objetivo integrado por um complexo topográfico e seu terreno natural adjacente, onde construções feitas pela mão humana ou a densidade dos não combatentes são as características dominantes”. 

Aleppo, Mosul, Sanaa, Mogadício e Gaza. Estas cidades devastadas pela guerra são alguns exemplos da crescente tendência ao conflito global em que violentos e ferozes combates ao redor do mundo são travados mais e mais em áreas urbanas densamente povoadas, com terrível custo de vidas dos seus habitantes. Apesar da sua aversão pelo combate urbano, estrategistas militares estão de modo geral convencidos que o futuro da guerra está nas cidades. Ao mesmo tempo, agências humanitárias tais como a Cruz Vermelha (ICRC) e o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (UNHCR) estão ajustando os procedimentos da sua atuação em tempo real nas ações de ajuda nos centros urbanos.

Esse crescimento da violência urbana e o ressurgimento da guerra nas cidades resulta de três fatores chaves:  a tendência global à urbanização; a crescente volatilidade da conjuntura política nos países em desenvolvimento; e mutações das particularidades dos conflitos armados.
        
Em junho de 2014, o mundo assistiu perplexo as Forças de Segurança do Iraque colapsarem diante do avanço do Daesh (Estado Islâmico) em Mosul, a segunda maior cidade do país, com mais de dois milhões de habitantes. Depois de anos de treinamento ministrado por forças aliadas e centenas de milhões de dólares investidos em armamento e petrechos militares, duas divisões iraquianas – mais de 20.000 homens – simplesmente recuaram desordenadamente para escapar ao assalto de uma força de insurgentes, que não chegava a 2.000 militantes.

Deixaram para trás uma quantidade fantástica de equipamento, que alimentou a máquina de guerra do Daesh e impulsionou sua expansão. Foram necessários quase 100.000 homens de forças regulares iraquianas somados a milícias tribais e religiosas aliadas e forças especiais da coalizão, com maciço apoio aéreo e mais de três anos para a retomada da cidade e a libertação dos cerca de um milhão de habitantes remanescentes.
        
A aparente facilidade com que o Daesh tomou cidades como Mosul e Tikrit no Iraque e Deir ez-Zour e Raqqa na Síria foi surpreendente, considerando que historicamente insurgências com base urbana têm sido raras e malogradas. Por exemplo, com exceção do Iêmen em 1967, a estratégia do combate urbano foi estéril em países como El Salvador, Guatemala e Peru. Durante os anos 1970/80, as campanhas de terrorismo urbano de grupos separatistas como o Exército Republicano Irlandês (IRA) e o ETA espanhol, assim como grupos extremistas de direita e de esquerda na Itália, França e Alemanha também fracassaram.

Essa pobre trajetória de pouco sucesso não surpreende. Afinal de contas, cidades são os bastiões do poder estatal. Sendo o epicentro das atividades política, comercial, industrial e econômica, e das comunicações e da cultura, as cidades situam-se geralmente no centro da malha de transportes e é onde o Estado pode mais facilmente concentrar sua força máxima. Scholars da insurgência clássica e das guerras civis consideram que as cidades oferecem alvos mais fáceis para o Estado controlar do que a pacificação de grandes áreas rurais no interior e periferia do país.
        
O extraordinário desenvolvimento da tecnologia militar também teve o condão de ampliar o distanciamento existente entre exércitos regulares e grupos irregulares, tornando mais difícil organizar e mobilizar levantes com base urbana contra a superioridade das forças estatais. Estudo da RAND Corporation, acerca das insurgências globais (1), concluiu que “insurgências urbanas têm sido tradicionalmente menos difíceis de derrotar”.

A METAMORFOSE DA GUERA: Urbanização, Instabilidade Política e Ascensão de Atores Não-Estado (2).
        
Apesar de fracasso das insurgências urbanas contemporâneas, a violência política global, que não só está em ascensão, é crescentemente mais urbana que rural. Desde desordens urbanas de caráter criminal e a violência urbana endêmica na Índia e Paquistão aos atentados terroristas a tiros, bombas e veiculares  da responsabilidade ou inspiração do Daesh, em Barcelona, Paris Bruxelas, Istambul e outras importantes cidades da Europa, Oriente Médio e Ásia, e grupos como o al-Shabab e Boko-Harampromovendo ataques em larga escala em cidades da Somália, Quênia e Nigéria, a realidade é que grupos armados, insurgentes, terroristas e gangues criminais estão praticando violência jamais vista no passado.

Uma crescente proporção dos mais violentos conflitos ao redor do mundo é travada em cidades tais como Aleppo, Marawi, Gaza, Mogadíscio, Donetsk, Sanaa e muitas outras, onde forças estatais regulares combatem grupos que exploram o terreno urbano para compensar sua relativa debilidade. Por trás do aumento da violência urbana e o ressurgimento da guerra em cidades está a confluência de tendências demográficas globais, a dinâmica do poder político doméstico e mudanças no caráter do conflito armado.               
        
Basicamente, conflitos violentos ocorrem onde as pessoas vivem e pela primeira vez na história do mundo, neste século XXI mais gente vive em áreas urbanas do que em áreas interioranas. Esta mudança na urbanização global aconteceu muito rapidamente.

Em 1990, a população mundial era 43% urbana (2,3 bilhões). Em 2015, esta proporção cresceu para 54% (4 bilhões). Por volta de 2030, mais de 60% da população global viverá em cidades.


 
Atuais e futuras Megacidades.     
        
No contexto deste fenômeno mundial da concentração populacional nas cidades, os países subdesenvolvidos em crescimento, especialmente aqueles localizados na África subsaariana e partes da Ásia, estão se urbanizando a velocidade muito maior do que os países ricos.

É verdade que usualmente a urbanização é um fenômeno positivo, porquanto contribui para o crescimento industrial e a redução da pobreza. Ainda assim, quando a administração das cidades e a da segurança e dos serviços públicos não conservam uma harmonia associada ao crescimento populacional, medram oportunidades para atores Não-Estado competirem politicamente e desafiarem militarmente a administração local.
         
A combinação da pobreza urbana, alta densidade populacional, recursos públicos insuficientes e má gestão governamental tornam cidades como Cairo, Lahore, Dhâka e Kinshasa particularmente vulneráveis à agitação política e social, criminalidade violenta e terrorismo. Quando a violência criminal ou política sobrepujaapolícia local e o aparato de segurança estatal regional, forças militares precisam restaurar a ordem.

Esta linha de ação é problemática, considerando que a história da guerra urbana é caracterizada por militares lutando por cidades, não nas cidades. Apesar dos exemplos históricos de grandes batalhas decisivas travadas em teatro urbano, tais como Stalingrado, Aachen, Hue e Grozny, desde sempre os teóricos militares e a doutrina  recomendam aos Exércitos evitar, passar ao largo ou isolar cidades ao invés de conduzir operações de combate no seu interior.

Dessa forma, como forças militares – que não são nem treinadas, nem organizadas, nem equipadas para operar no ambiente urbano – são cada vez mais empregadas para restaurar a estabilidade política em cidades, poderemos testemunhar destruição catastrófica e mais mortes de civis do que em qualquer outra ação militar. Este fenômeno é mais visível no Oriente Médio, onde a luta em cidades e vilas através da Síria, Iraque e Iêmen está criando o que a ICRC descreve como uma “nova escala de padecimento urbano ... em que nada e ninguém é poupado pela violência”.
        
Num mundo empenhado em rápida urbanização, infraestruturas estatais deficientes são uma fonte de violência urbana à medida que grupos armados se capacitam para explorar o descontentamento popular e a má governança para assegurar sua presença nas áreas urbanas afetadas. Ao mesmo tempo, a crescente vocação dos grupos armados de lutar em cidades decorre do fato de que o ambiente urbano por si só desconcerta, se não, com efeito, altera a balança de poder entre forças estatais regulares e grupos armados irregulares.

Considerando mesmo, por momentos, que lutar em cidades exige muita tropa, tanto pela alta proporção de baixas como pela necessidade de proteger continuamente cada sítio retomado, o aumento do contingente envolvido nos combates não traz de per si grande vantagem. Os russos constataram na 1ª Guerra da Chechênia, que mais tropas engajadas em busca de vitória não quer dizer mais efetividade no campo de batalha urbano (3).

As cidades também tendem a restringir as vantagens tecnológicas das forças convencionais tornando armas avançadas, por exemplo, misseis AT/AB guiados por fio, menos efetivas e limitando enormemente a observação e o reconhecimento aéreo. Dessa forma, os insurgentes podem furtar-se à localização e manobrar facilmente, ao passo que as forças regulares são prontamente identificadas quando se movimentam.

Essa dinâmica ajuda a explicar porque, apesar de serem em menor número e menos equipados, grupos armados se movimentam melhor e mais rápido para superar as forças de segurança, forçando os Estados a acionar forças militares cuja missão é salvar cidades, que acabam destruindo.

 
Série de artigos sobre MEGACIDADES e a análise do Estudo do US Army:MEGACITIES AND THE UNITED STATES ARMY PREPARING FOR A COMPLEX AND UNCERTAIN FUTURE

Megacidades: SP e RJ pelo US Army 


O FUTURO CONFLITO GLOBAL URBANO.

O futuro da violência global é urbano em alta medida. Apesar das insurgências rurais não terem desaparecido, tendências recentes refletem a ascensão de conflitos intranacionais envolvendo atores Não-Estado se aproveitando  das possíveis vantagens táticas das cidades para alcançar seus objetivos políticos.

Além disso, como ressaltam Craig Whiteside e Vera Mironova, a ”produção industrial e utilização em escala desmedida de bombardeios suicidas” (4) na campanha da retomada de Mosul, principalmente carros-bomba, bem como o emprego progressivo de drones armados, distinguem aspectos da guerra urbana moderna que vão caracterizar as futuras operações militares nas cidades.
        
De fato, lideranças na comunidade americana de defesa estão conscientes de que guerras futuras serão travadas em centros urbanos densamente povoadas e que militares americanos provavelmente estarão  envolvidos em certo número desses conflitos.  Dessa forma, é crítico para os americanos e seus aliados reavaliarem sua preparação para essas eventualidades (5).
        
Primeiro, e talvez mais urgente, os militares devem investir mais recursos na preparação da tropa e das unidades para operar no terreno urbano. A metodologia atual é ad hoc e ineficiente. Não há unidades especiais para tal, escolas [salvo na França (6) e em Israel (7)], ou pesquisadores preparados no US Army e aliados. Uma simples unidade especializada (8) poderia ser formada para explorar as necessidades do exercício do comando, treinamento e equipamento especializado para operações nas cidades, ao invés de investir maximamente em unidades destinadas ao combate na selva, no deserto ou nas montanhas da Europa Oriental. A organização militar americana não tem escola de guerra urbana.
        
Uma escola de elite dedicada ao estudo do denso ambiente urbano poderia suprir a ausência de um sítio urbano real para treinar forças militares, bem como experimentar novas táticas e equipamento, formar uma equipe dedicada ao treinamento e um grupo de pesquisadores destinado ao estudo holístico do conflito urbano. Ao mesmo tempo, o treinamento adequado, a par da execução de operações militares, pode assegurar que a força letal é empregada de acordo com normas legais e humanitárias.

Mas, uma área ou centro real de treinamento é apenas uma parte necessária para que nossos militares sejam capazes de operar no ambiente urbano. Os militares precisam ter a habilidade de entender a contínua evolução das cidades globais. A complexidade dessas densas áreas urbanas exige dedicação integral e permanente aos estudos e pesquisas sobre as implicações militares e ampla segurança das cidades, que podem orientar o treinamento e preparação – desde a simples tática exigida para o combate  à abordagem da estratégia política. Ao mesmo tempo, qualquer treinamento e preparação para operações militares, precisa assegurar que tal força letal seja empregada, como já foi dito, de acordo com as normas legais e princípios humanitários.

Este é um tópico complexo e profundamente contestado, especialmente em função de governos autocráticos como os da Síria e da Rússia, e mesmo da coalização saudita no Iêmen, que têm repetidamente usado armas e táticas que falham em distinguir entre combatentes e não combatentes, aumentando exageradamente os efeitos colaterais e violando diretamente as leis de guerra.  Da mesma forma, a complexidade e a densidade do terreno urbano e a presença de grandes populações de civis representam um sério desafio até para forças militares tecnologicamente avançadas dos estados democráticos, as quais geralmente procuram respeitar a lei humanitária internacional.  
          
Outro fator complicador é que tratados internacionais destinados a proteger civis em tempo de guerra resultam indesejados quando se luta em cidades. O emprego de armas químicas é banido por esses tratados, por exemplo proibindo militares de usarem gás lacrimogêneo, dificilmente letal e não destrutivo e usualmente empregado por forças policiais na técnica de controle de multidões. Na retomada da cidade de Hue, Vietnam do Sul (1968) fuzileiros navais americanos serviram-se vantajosamente do gás lacrimogêneo para desentocar forças do Vietcong e do Exército do Vietnam do Norte.

Essas questões demonstram a necessidade de um profundo entendimento das condições operacionais, políticas e legais que tornam mais ou menos efetivas medidas de proteção da população civil. As recentes vitórias alcançadas em Mosul e Raqqa resultaram na destruição total dessas cidades. Obviamente, há necessidade de revisar seriamente o modo como os militares lutam em densas áreas urbanas.      

 
CONCLUSÕES

As grandes e densas áreas urbanas são ao mesmo tempo a máquina da prosperidade econômica e o locus dos desafios à segurança nacional. Novas pesquisas realizadas recentemente, empregando tecnologia geoespacial referendadas pela ONU  mostraram, ao invés dos dados de censos demográficos clássicos, que os números da urbanização podem ser bem maiores daqueles que conhecemos.

De acordo com os resultados dessas pesquisas, mais de 80% da população mundial, cerca de 6,4 bilhões de pessoas, vivem hoje em áreas urbanas. Sejam quais forem os verdadeiros números da urbanização global, o crescimento da importância das cidades não pode ser contestado. De 2014 a 2016, as 300 maiores áreas metropolitanas do mundo foram responsáveis por 67% do produto interno bruto global.

Tomando-se a China como exemplo, o enorme crescimento urbano no país produziu rapidamente centros populacionais com 110 – 150 milhões de habitantes – três vezes o número de habitantes – 40 milhões – que residem em Tóquio, o maior centro urbano do mundo. Esse fato obrigou o governo chinês a desencadear a reorganização das estruturas de governança nacional em super regiões urbanas.
         
No Brasil, especificamente, pelos critérios atuais o espaço urbano é determinado por lei municipal, sendo o rural definido por exclusão à área urbana. Nesta classificação, o Brasil tem de acordo com o Censo 2010 84,4% da população vivendo em áreas urbanas e 15,6%, em zonas rurais. O IBGE adotou novos critérios para o censo de 2020.

As principais conclusões da nova classificação dos municípios de acordo com a tipologia rural-urbana, segundo grande região e população indica que 76% da população vivia em municípios urbanos e 60% dos municípios eram rurais:
Norte, 10,5% da população residia em municípios rurais remotos e 65% do número de municípios eram rurais;
Nordeste, um terço da população residia em municípios rurais, representando 68,9% do total de municípios;
Sudeste, 87% da população residia em municípios urbanos;
Sul, apenas 0,05% da população residia em municípios remotos, e,
Centro-Oeste, 79,8% da população reside em municípios urbanos.                                    
Cidades são o futuro – o futuro da prosperidade e, infortunadamente, o futuro da guerra.  É hora de começar a investir recursos governamentais mormente na área militar e educacional.

Levando em conta os dados do IBGE e o crescente uso de Operações de Garantia da Lei e da Ordem, cuja frequência tende a aumentar graças à situação falimentar da maioria dos Estados brasileiros, é o que nos diz o General Villas Bôas em pronunciamento “Defesa para Que?”: 

 
”(...) A segunda função provém de uma visão sistêmica que passou a prevalecer após a queda do Muro de Berlim, quando a Defesa deixou de restringir-se à preparação para fazer face a um inimigo. Desde então as Forças Armadas devem estar, permanentemente, aptas a atender a múltiplas exigências da sociedade. No Brasil, salientam-se demandas por infraestrutura para a integração regional, por segurança e pelo atendimento a catástrofes que têm recebido o nosso suporte incondicional. O agravamento da situação da segurança pública tem levado o governo federal a utilizar as Forças Armadas para intervir em unidades da Federação. Recentemente, atuamos no Rio Grande do Norte; no Distrito Federal, para salvaguardar patrimônio público; no Espírito Santo, durante a greve da Polícia Militar; por diversas vezes no Rio de Janeiro, onde, atualmente, participamos da intervenção federal, culminando com o emprego, em todo o território nacional, durante a greve dos caminhoneiros (...).” (9)
         
O Exército Brasileiro tem uma Escola de elite reconhecida internacionalmente – O Centro de Instruções de Guerra na Selva (CIGS). Está mais do que na hora da implantação de uma Escola de Guerra Urbana de sorte a preparar unidades especializadas permanentes, com doutrina própria,   equipadas especialmente para esse tipo de missão e com capacidade de deslocamento rápido. Carecemos de organizações e parcerias focadas especificamente nas implicações da segurança nacional no nosso universo urbano.


São Paulo – Jardins. Construções baixas e altas – modelo da alta complexidade urbana.

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