Repatriado diz que EI está recrutando para ataques terroristas na Alemanha








O extremista islâmico Harry S. não ficou na Síria por muito tempo. Mas durante sua estadia ali, ele alega, os líderes do Estado Islâmico tentaram repetidamente recrutá-lo para cometer ataques terroristas na Alemanha. As autoridades de segurança acreditam que ele possa estar dizendo a verdade.

Era um início de manhã de verão no deserto sírio, sem uma nuvem no céu, quando Mohamed Mahmoud perguntou aos reunidos ao seu redor: "Aqui estão alguns prisioneiros. Qual de vocês deseja eliminá-los?"

Não muito antes, o EI (Estado Islâmico) tinha tomado a cidade de Palmira, e agora os jihadistas da Alemanha e da Áustria participariam das execuções de alguns dos prisioneiros feitos na operação. Eles seguiram para o local de execuções em picapes Toyota, acompanhados de uma equipe de câmeras do EI que documentaria a atrocidade na cidade das ruínas antigas. Na época, Mohamed Mahmoud era conhecido pelas autoridades de segurança alemãs por seus repetidos vídeos de propaganda para as pessoas se juntarem à jihad. Naquela manhã de verão em Palmira, entretanto, ele não apenas incitava os outros. Ele pegou pessoalmente um fuzil Kalashnikov e começou a disparar. Naquele dia, Mahmoud e seu grupo de executores teriam matado seis ou sete prisioneiros.

A história é contada por alguém que estava em Palmira naquele dia: Harry S., 27, de Bremen, Alemanha. "Eu vi tudo", ele diz.

Harry S. voltou da Síria para a Alemanha e agora está sob custódia investigativa. Ele disse às autoridades de segurança tudo sobre o breve período que passou com o Estado Islâmico e também demonstrou prontidão para prestar extenso testemunho aos promotores públicos alemães. Ele é acusado de ser integrante de um grupo terrorista. Seu advogado, Udo Würtz, se recusou a oferecer uma resposta detalhada quando contatado, mas disse sobre seu cliente: "Ele quer confessar tudo".

Os investigadores alemães estão extremamente interessados no testemunho do repatriado aparentemente arrependido, apesar de estarem perturbados com o que ele tem a dizer.

Uma testemunha vital

Afinal, Harry S. é mais do que apenas uma testemunha de esquadrões de fuzilamento e decapitações. Ele também diz que em várias ocasiões, membros do EI tentaram recrutar voluntários para ataques terroristas na Alemanha. No primeiro semestre, logo após sua chegada à Síria, ele diz que perguntaram a ele e outro islamita de Bremen se conseguiam se imaginar perpetrando ataques na Alemanha. Posteriormente, quando ele estava não longe de Raqqa, a capital do autoproclamado Estado Islâmico, homens mascarados chegaram em um jipe. Eles também lhe perguntaram se estava interessado em levar a jihad à sua terra natal. Harry S. diz que lhes disse que não estava preparado para fazê-lo.

Harry S. esteve apenas por três meses em território controlado pelo EI. Mas mesmo assim pode se tornar uma testemunha vital para as autoridades de segurança alemãs. Desde os ataques de 13 de novembro em Paris, o medo do terrorismo aumentou por toda a Europa, inclusive na Alemanha, e a segurança foi reforçada em estações de trem e aeroportos. E o testemunho de um repatriado de Bremen parece indicar que o temor é justificado. Harry S. diz que, durante sua estadia na zona de guerra síria, ele ouvia com frequência pessoas falando sobre ataques no Ocidente e que praticamente todo jihadista europeu foi abordado com as mesmas perguntas que lhe fizeram. "Eles querem algo acontecendo em toda parte ao mesmo tempo", diz Harry S.

O caminho de Harry S. de Osterholz-Tenever, um bairro de Bremen, até os jihadistas do Estado Islâmico não foi particularmente notável. Sua radicalização foi semelhante a de muitos outros jovens, homens sem rumo dos subúrbios europeus, do distrito de Molenbeek de Bruxelas até Lohberg, em Dinslaken, Alemanha. Em Tenever, algumas das torres residenciais chegam a 20 andares de altura.

Filho de pais ganenses, Harry S. cresceu em "condições difíceis", segundo os autos do processo. Seu pai abandonou a família pouco depois de ele entrar na puberdade. Apesar de Harry S. ter inicialmente conseguido se formar em um colégio menor na Alemanha, ele sonhava retornar à terra natal de seus pais e trabalhar como engenheiro civil.

Houve até mesmo um breve momento em que parecia que ele conseguiria controle sobre sua vida. Mas então, no início de 2010, ele e alguns amigos roubaram um supermercado, fugindo com 23.500 euros (pouco mais de R$ 100 mil) para a ilha de Grã Canária para férias. Não demorou muito para as autoridades pegá-los e Harry S. foi condenado a dois anos atrás das grades.

Um radical perigoso

Na prisão, ele conheceu um salafista chamado René Marc S., o "Emir de Gröpelingen" –um homem que as autoridades de Bremen consideram ser um radical perigoso. Não demorou muito para as autoridades carcerárias notarem uma "mudança de caráter" em Harry S. Segundo documentos da prisão, ele se converteu ao Islã e expressava "sentimentos radicais" em relação a eventos mundiais. Após sua soltura, o novo convertido visitou a Mesquita Furqan (que de lá para cá foi fechada) no bairro de Gröpelingen, em Bremen. Na mesquita, ele se tornou parte de um grupo salafista que enviou pelo menos 16 adultos e 11 crianças para a Síria em 2014.

Harry S. também tentou fazer a jornada. De Istambul, ele voou em abril de 2014 para Gaziantep, uma grande cidade turca próxima da fronteira com a Síria, mas a viagem teve um final prematuro. As autoridades turcas o prenderem e o enviaram de volta para Bremen, onde ele disse à polícia que queria ajudar nos campos de refugiados sírios. As autoridades não acreditaram nele e confiscaram seu passaporte, em um esforço de impedi-lo de fazer outra tentativa. Às terças e sábados, ele era obrigado a se apresentar a uma delegacia de polícia local.

Mesmo assim, as autoridades não conseguiram impedir o salafista de viajar para a Síria para se juntar à guerra. Harry S. simplesmente pegou o passaporte de um conhecido e, acompanhado de outro islamita de Bremen, viajou por terra por Viena e Budapeste. Desta vez, não havia polícia aguardando por ele na fronteira com a Síria. Em vez disso, ele foi recebido por contrabandistas que o ajudaram a atravessar a fronteira até um abrigo do EI para recém-chegados de toda parte do mundo.

Harry S., um homem grande com ombros largos, foi treinado como combatente na Síria. Ele alega ter sido instruído em campos de treinamento juntamente com 50 outros homens: exercícios, horas de pé sob o sol e marchas forçadas que duravam o dia todo. Aqueles que desistiam eram presos ou espancados. Seu fuzil Kalashnikov, lhe era incutido, deveria se tornar seu "terceiro braço" e era instruído a manter a arma na cama enquanto dormia.

Assim que terminou o treinamento, ele diz que se tornaria um membro de uma unidade especial, uma espécie de esquadrão suicida para combate de casa em casa. Harry S. alega que, durante seu breve período na Síria, nunca foi enviado para batalha –mas alega ter conhecido muitos homens jovens, incluindo alemães, que morreram em combate. "Felizmente, eu consegui escapar", ele diz.

Notórios jihadistas de língua alemã

As informações do convertido de Bremen sobre o Estado Islâmico são do interesse das autoridades de segurança. Harry S. é o primeiro repatriado que pode oferecer um entendimento sobre os papéis exercidos por dois notórios jihadistas de língua alemã que se juntaram ao Estado Islâmico: Mohamed Mahmoud, um islamita da Áustria, e o ex-rapper de Berlim, Denis Cuspert (também conhecido como Deso Dogg). Rumores de que foram mortos recentemente na Síria até o momento não foram confirmados pelas autoridades alemãs.

Mahmoud chamou inicialmente atenção em Viena por suas postagens radicais na internet e por ter passado quatro anos na prisão lá. Ele então se mudou para a Alemanha, onde fundou um grupo salafista chamado "Millatu Ibrahim" com Cuspert. A associação foi declarada ilegal pelo Ministério do Interior alemão há três anos e em seguida vários de seus membros foram para a clandestinidade, apenas para reaparecerem como membros do Estado Islâmico na Síria e no Iraque.

Harry S. se encontrou tanto com Cuspert quanto com Mahmoud em Raqqa. Ele se sentou em uma mesquita com Cuspert e diz que o ex-rapper tinha acabado de voltar da linha de frente. S. disse que sua impressão era de que Cuspert era mais importante para o Estado Islâmico como o "herói" dos vídeos de propaganda usados para atrair recrutas ocidentais do que como combatente. Mahmoud, ele disse, tinha mais influência e realizava sessões de treinamento de ideologia às sextas em Raqqa. Mahmoud, diz Harry S., é "realmente perigoso", acrescentando que nunca antes tinha conhecido uma pessoa tão perturbada. Após as execuções em Palmira, diz S., Mahmoud estava orgulhoso do que tinha feito.

A "Spiegel" não conseguiu confirmar tudo o que Harry S. disse. Mas muitos detalhes mencionados por ele são consistentes tanto com as descobertas das autoridades de segurança quanto com o testemunho de outros suspeitos de terrorismo.

'Caminhei e caminhei'

Além disso, há prova das execuções em Palmira que Harry S. alega ter visto. Em meados deste ano, o Estado Islâmico divulgou um vídeo de cinco minutos e meio que foi editado em algumas partes, como um filme de horror. Era o primeiro vídeo de execução em língua alemã divulgado pelo EI e exibia dois homens de joelhos entre colunas antigas, tendo Mahmoud e outro islamita da Alemanha empunhando armas entre eles. "Merkel, sua cadela imunda", diz Mahmoud para a câmera. "Nós nos vingaremos." Então eles disparam na cabeça dos prisioneiros; um hino jihadista é tocado ao fundo.

Harry S. faz igualmente uma breve aparição no vídeo. Trajando uniforme de camuflagem, ele passa carregando uma bandeira do Estado Islâmico. Seu advogado, Udo Würtz, diz que seu cliente não participou diretamente das execuções. "Ele é um lacaio que se deixou enganar pela propaganda do EI e que se enganou."

Logo após as execuções em Palmira, Harry S. deu início à sua jornada para sair da Síria e voltar para a Alemanha. Ele diz que não conseguia mais suportar toda a violência. Apesar de seu grande temor de que o Estado Islâmico possa persegui-lo e matá-lo como traidor, ele partiu em segredo certa noite e conseguiu chegar à Turquia. "Eu caminhei e caminhei", ele diz.

Quando Harry S. chegou a Bremen em 20 de julho, a polícia estava aguardando por ele com um mandado de prisão.
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