- Soldado procura por corpos em uma vala comum localizada em um aterro em Hamam al-Alil, Iraque
A batalha havia terminado em Hamam al-Alil, uma antiga cidade de águas termais que as forças de segurança do país tiraram das mãos do Estado Islâmico alguns dias antes, mas um soldado iraquiano ainda se encontrava em uma missão muito pessoal.
O soldado, Zaman Mijwal, procurava por seu irmão mais velho, Munther, um ex-policial que ele descreve como "um homem calado, um homem pobre" que vivia em um vilarejo da região mas de quem não se tinha notícias havia semanas.
A rota de Mijwal o havia levado até um trecho de estrada cercado por dois descampados. Ele apontou para um lado, onde cadáveres decapitados e em decomposição jaziam em montes de lixo em um terreno árido que um dia já fora campo de treinamento de tiro para o Exército iraquiano.
"Ele pode estar lá", ele disse.
Ele apontou para o outro lado da estrada, uma vastidão de terra que parecia recém-revolvida.
"Ou ele pode estar ali".
Parece que a cada quilômetro de território que as forças de segurança iraquianas retomam do Estado Islâmico, mais uma vala coletiva é descoberta. Tornou-se algo quase ritual, e desesperadamente comum.
O legado da vala comum no Iraque é antigo, tendo começado muito antes do Estado Islâmico, na época das matanças em escala industrial de Saddam Hussein. Elas são o terrível símbolo do que tem sido há décadas uma constante angustiante na vida no Iraque: o desaparecimento de entes queridos dentro das engrenagens do despotismo.
Para os iraquianos, o Estado Islâmico, para quem a vala comum faz parte da infraestrutura do grupo tanto quanto as prisões improvisadas e as casas de escravos, é só uma nova forma de tirania com ligações diretas com o regime de Hussein. Muitos ex-oficiais ba'athistas das forças de segurança de Hussein ocupam cargos altos no Estado Islâmico, imitando as táticas do ex-ditador.
Ultimamente, com o Estado Islâmico sob pressão das forças de segurança iraquianas, a crueldade do grupo se intensificou: muitas das valas comuns descobertas recentemente, a maior delas sendo em Hamam al-Alil, contêm corpos de homens locais. A maior parte dos que estavam enterrados eram ex-membros das forças de segurança que foram executados somente nas últimas semanas, depois que começou a campanha para retomar Mossul.
Alguns deles, como Jamal Abul Younis, se consideram sortudos. Younis é um ex-policial de Hamam al-Alil que também foi marcado para execução, mas sobreviveu ao se esconder em um buraco no chão, coberto por um ventilador, em sua casa de piso de terra batida. Ele conta, a respeito sobre o tempo em que permaneceu escondido, que "cada hora pareceu um ano."
Hoje ele é um dos poucos sobreviventes que testemunharam os massacres do Estado Islâmico em Hamam al-Alil. Ele conta que, em uma noite, por volta das 20h, há várias semanas, ele assistiu a partir de seu telhado oito micro-ônibus se encaminharem na direção da área onde a vala comum foi descoberta, e ouviu tiros atrás de tiros.
"Eu vi o Daesh enterrar 200 corpos aqui", ele disse, usando o acrônimo árabe para Estado Islâmico. (O governo oficial estima que cerca de 100 pessoas tenham sido mortas em Hamam al-Alil. Mas a Human Rights Watch, depois de conduzir sua própria investigação, acredita que pelo menos 300 tenham sido mortas ali.)
Nos dias que antecederam os massacres, segundo ele, militantes do Estado Islâmico haviam arrebanhado centenas de pessoas --talvez milhares-- de vilarejos próximos e as levaram até Hamam al-Alil, usando-as como escudos humanos contra a possibilidade de ataques aéreos dos Estados Unidos.
Ele conta que na cidade os militantes reuniam as pessoas, recitando versos do Corão e rezando a Deus para que os protegessem das milícias xiitas e do Exército do Iraque. Então eles separaram ex-policiais, muitos dos quais, depois que o Estado Islâmico conquistou suas terras há mais de dois anos, se arrependeram e fizeram as pazes com seus novos governantes.
Agora, com as forças governamentais lançando uma ofensiva para retomar esses territórios, o Estado Islâmico os viu como possíveis espiões, ou uma quinta coluna se preparando para se rebelar e entrar para as forças de segurança, e ordenou que os matassem.
"Não consigo acreditar que ainda estou vivo", disse Younis.
Para os iraquianos, a dor de não se saber pode ser a pior de todas as dores. A Comissão Internacional para Pessoas Desaparecidas, uma organização baseada na Holanda, estimou que até 1 milhão de iraquianos desapareceram na história recente. Isso abrange a guerra entre o Irã e o Iraque, os assassinatos em massa ordenados por Hussein após um levante xiita em 1991, os ataques de Anfal com armas químicas cometidos pelo governo iraquiano contra os curdos no final dos anos 1980, e a guerra civil sectária mais recente da última década.
A comissão notou em seu website que há "milhões de parentes dos desaparecidos no Iraque lidando com a incerteza em torno do destino de um ente querido."
Em qualquer lugar do Iraque, especialmente no sul, onde os xiitas dominam, você pode bater em praticamente qualquer porta e ouvirá uma história de um ente querido perdido e, menos provavelmente, de um pequeno fio de esperança.
Nihad Jawad, uma professora da cidade de Hilla, ao sul, disse que em uma noite de 1991, seu irmão saiu de casa e nunca mais se teve notícias dele. Ela ouviu todo tipo de rumor: que ele foi visto sendo pego pelos militares, que ele levou um tiro. "Nós procuramos em todo lugar por ele e não encontramos nada", ela disse. "Ainda temos esperança de que ele esteja sendo mantido em uma das prisões secretas."
A brutalidade do Estado Islâmico escreveu um novo capítulo nessa história sombria. O número de corpos foi demais para a capacidade do governo iraquiano, e pouquíssimos deles chegam a ser identificados por testes de DNA.
Na província de Diyala, onde o Estado Islâmico já foi forte, um pai que perdeu seu filho cerca de dois anos atrás disse que ele busca em websites jihadistas por vídeos que possam mostrar seu filho desaparecido. Ele corre até o local de cada vala comum que é descoberta na província.
"O mais difícil é quando meu neto me pergunta sobre seu pai"", disse o homem, que se identificou como Abu Marwan. "Eu respondo que ele está viajando e um dia vai voltar."
Mijwal, o soldado, assim como milhões de outros aqui que sofreram o mesmo ritual doloroso, não encontrou nenhuma resposta para o que aconteceu com seu irmão.
"Não temos nenhuma informação sobre ele", ele disse. "Então vim aqui. É muito difícil para mim. Não sei que destino ele teve. No mínimo, preciso encontrar seu corpo. Isso que é importante para nós, para que possamos realizar um funeral."
E acrescentou: "Milhares de pessoas não sabem que destino tiveram seus entes queridos."
Existe um famoso romance iraquiano chamado "Saddam City", escrito por Mahmoud Saeed, no qual o protagonista desaparece dentro de uma das muitas prisões do antigo regime de Hussein, deixando seus entes queridos desesperados atrás de informações.
No romance, refletindo sobre seu próprio destino como prisioneiro, ele lembra "a inutilidade de se tentar ajudar uma vizinha a encontrar seu marido desaparecido". Eles visitaram um hospital, onde "éramos só mais um elo em uma longa cadeia de pessoas que visitaram hospitais em busca de seus entes queridos desaparecidos."
Algumas páginas depois, Saeed escreve: "Coisas assim aconteciam rotineiramente."
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