Recentemente libertada, a cidade de Qayyarah simboliza os horrores causados pelos jihadistas. Seus habitantes agora tentam lidar com as feridas deixadas pelo grupo terrorista, que alimentam o ódio sectário.
Poços de petróleo queimados pelos jihadistas: a fumaça está afetando a saúde da população
Foi há dois anos que as mudanças
começaram a ser notadas. Primeiro, o policial da casa da frente fugiu.
Depois, chegaram as novas "autoridades". Não demorou para que Hassan, um
homem amigável de 49 anos, percebesse que algo sinistro estava
acontecendo em Qayyarah, uma cidade empoeirada às margens do rio Tigre:
de sua casa, ele passou a ver jihadistas levando homens para o quintal e
os espancando; prisioneiros sendo arrastados para dentro, e seus corpos
sendo descartados alguns dias depois. Era o Estado Islâmico (EI), que,
após derrotar o Exército em Mossul, havia invadido a província de
Nínive, no noroeste do Iraque, e ocupado Qayyarah.
"Os corpos eram armazenados em um
congelador", conta Hassan, enquanto aponta para o sombrio interior da
casa, onde colchões com manchas de sangue se amontoam pelo chão, e
placas de metal vedam as janelas de quartos convertidos em celas de
prisão.
Um alto membro do EI chamado "Abu Najid"
viveu aqui até que Forças Especiais do Iraque expulsaram o grupo
terrorista da cidade durante uma batalha de dois dias de duração no
final de agosto. Conhecido como o "juiz sangrento" entre os vizinhos,
ele decidia o destino daqueles que caíam nas mãos do EI.
"Juiz sangrento".
Após ser torturado até confessarem, os
prisioneiros eram frequentemente assassinados por enforcamento por meio
de um gancho instalado no teto, morrendo quando uma cadeira sob seus pés
era chutada, conta um oficial do Exército iraquiano, enquanto observa a
sala de execução onde ocorriam esses assassinatos.
Abu Najid, o juiz sangrento, fez uso do
seu status proeminente dentro do EI para manter quatro mulheres da
minoria yazidi como escravas sexuais. Elas, assim como milhares de
desafortunadas yazidis, foram distribuídas entre os terroristas quando
capturadas durante a ofensiva do EI na região de Sinjar, em agosto de
2014.
Algumas vezes, as mulheres recebiam
permissão para sair sem guarda – e usavam essa oportunidade para pedir
ajuda. "As yazidis pediam aos vizinhos que eles enviassem mensagens para
seus parentes. Quando uma patrulha do EI flagrava esses encontros com
habitantes locais, o juiz as espancava", diz Shema, a filha de oito anos
de Hassan, que conversava frequentemente com as mulheres.
Abu Najid levou consigo as quatro
mulheres – que tinham todas menos de 30 anos, segundo os vizinhos –
quando fugiu de Qayyarah. Alguns vestidos descartados no gramado do lado
de fora da casa servem como um lembrete do suplício delas.
Reino de terror
O EI instalou cinco prisões cruéis desse
tipo em Qayyarah, uma cidade de cerca de 20 mil habitantes. O reino de
terror passou a permear a vida cotidiana sob a supervisão da Hisbah, a
polícia moral do EI, responsável por aplicar a interpretação islâmica
medieval do grupo.
"Se você fosse ao mercado, você toparia
com o Daesh e a Hisbah. Eles verificavam barbas curtas, calças e até um
corte de cabelo considerado errado", conta Ahmed, um professor de inglês
de 42 anos, usando o acrônimo árabe para o EI.
O extremismo dos terroristas alienou a
população local, e uma oposição começou a se formar mesmo com a ameaça
de retaliações severas contra aqueles que fossem flagrados resistindo.
Quando as forças especiais iraquianas se aproximaram de Qayyarah, um
pequeno grupo de homens pegou em armas e resolveu enfrentar os
opressores, segundo o general Najim al-Jabouri, responsável pelas
operações militares na área de Nínive.
"Nós contatamos algumas pessoas no
interior de Qayyarah pouco antes da batalha. Quando nossas tropas se
aproximaram, eles se rebelaram e combateram o EI no interior da cidade.
Isso nos ajudou a tomar Qayyarah sem causar baixas entre os civis",
afirma o general à DW, a partir do seu quartel-general na cidade vizinha
de Makhmour.
Governo imperfeito
Em toda a Qayyarah, o alívio de se ver
livre do EI é visível. A população sunita do Iraque tinha queixas contra
o governo liderado por xiitas e suas forcas de segurança – e esse
ressentimento foi explorado pelos terroristas quando eles tomaram mais
de um terço do país. Mas na visão dos habitantes de Qayyarah – que são
sunitas –, os horrores dos dois últimos anos desqualificaram o EI como
uma alternativa viável ao governo imperfeito de Bagdá.
"Todo mundo sabe o que é o Daesh. Se você
tinha alguma vontade de se juntar ao Daesh, você pode apagar essa ideia
da sua cabeça", diz Ahmed, que perdeu o emprego quando o EI fechou as
escolas locais.
Para aqueles que precisam ser lembrados
da miséria trazida pelo EI a Qayyarah, colunas de fumaça que continuam a
sair dos poços de petróleo incendiados pelos terroristas durante sua
retirada servem como lembrete. O nevoeiro negro envolveu vizinhanças
inteiras enquanto engenheiros lutam para conter as chamas semanas após a
libertação da cidade. A fumaça está afetando a saúde da população, e os
moradores reclamam de dificuldades para respirar e de reações
alérgicas.
Marcados pela sua experiência com EI, os
habitantes se mostram simpáticos com as unidades do Exército que
defendem Qayyarah contra a ameaça de uma volta do grupo terrorista. "O
Exército iraquiano é o nosso exército", diz Ali Mohammed Abdullah, um
funcionário público aposentado.
Isso é um bom presságio para as forças do
governo e o futuro do Iraque. Qayyarah fica a apenas 60 quilômetros de
Mossul, o último refúgio do EI no Iraque e segunda maior cidade do país.
Mossul é uma cidade sunita, e uma
população hostil poderia comprometer uma ofensiva das forças de
segurança no bastião do EI, afirma Jubouri. Para ele, se as diferenças
sectárias entre os sunitas e xiitas não forem contornadas, o futuro do
país continuará sombrio: "Nós precisamos de reconciliação no Iraque."
Mas reconciliação não equivale à leniência com aqueles que se juntaram
ao EI.
Semanas após a retomada da cidade, alguns
homens ainda estão sendo detidos nas ruas e em prédios e mantidos sob a
guarda das Forças de Segurança para a identificação de possíveis
ex-colaboradores. Identidades são verificadas, e tribunais especiais são
instalados para determinar o destino dos acusados de se juntarem aos
terroristas.
"Algumas vezes os moradores de Qayyarah
dizem que um sujeito é bom – e as forças de segurança o deixam em paz.
Do contrário, ele é levado", afirma Ahmed, enquanto é submetido a uma
triagem na rua principal da cidade.
Ele e outros homens no grupo estão
amargurados com aqueles que entregaram seus vizinhos ao ajudar o EI.
Após quase conseguir rachar o país ao alimentar as chamas do ódio
sectário, o grupo terrorista deixa agora uma marca de comunidades
partidas nas terras sunitas do Iraque.
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