Burocracia excessiva, descentralização do Estado, rivalidade entre valões e flamengos e má integração de minoria muçulmana são algumas das explicações para capital belga ter se tornado foco do jihadismo.
Bruxelas foi alvo de atentados no
aeroporto internacional Zaventem e na estação de metrô de Maelbeek,
próxima a prédios da União Europeia. Os ataques desta terça-feira
(22/03) foram reivindicados pelo grupo jihadista "Estado Islâmico" (EI).
Apesar de ser esta a primeira vez que a
capital belga é alvo de atentados, ela tem sido frequentemente associada
ao terrorismo islâmico. A DW lista a seguir quatro fatores que
contribuíram para que Bruxelas se tornasse centro do jihadismo na
Europa.
"Recrutas belgas" do "Estado Islâmico"
O especialista em terrorismo Guido
Steinberg afirma haver uma relação entre os frequentes alertas
terroristas em Bruxelas e o que ele chama de "recrutas belgas", cidadãos
do país europeu que se uniram ao grupo "Estado Islâmico" na Síria. "O
EI decidiu contra-atacar na Europa. E como ele dispõe de muitos recrutas
belgas e também franceses, Bruxelas é, ao lado de Paris, um dos pontos
centrais da onda de atentados dos últimos meses", afirmou Steinberg à
emissora alemã de noticias N-TV.
De fato, as autoridades de segurança de
Bélgica identificaram centenas de jovens do país que viajaram à região
de guerra no Oriente Médio. Este é o caso do francês Salah Abdeslam, que
reside no distrito de Molenbeek, em Bruxelas, e de Abdelhamid Abaaoud,
dois presumíveis responsáveis pelos atentados de 13 de novembro de 2015
em Paris. As autoridades do país estimam que mais de 450 belgas partiram
para a Síria e outros centros do EI no mundo árabe.
Segundo o Centro Internacional para o
Estudo da Radicalização e Violência Política (ICSR), dos 11 mil
combatentes estrangeiros que se juntaram aos jihadistas na Síria e no
Iraque entre 2011 e 2013, quase um quinto saiu da Europa Ocidental. Com
pelo menos 296 recrutas, a Bélgica ocupa o topo dessa lista, em números
absolutos.
Para efeito de comparação, na Alemanha,
país de população oito vezes maior, estima-se que haja até 240
combatentes do jihad, a "guerra santa". Proporcionalmente à população, a
Bélgica tem 27 jihadistas para cada milhão de habitantes, sendo,
portanto, o principal "fornecedor" de combatentes europeus. "Os belgas
afrouxaram as rédeas quanto à observação da cena [jihadista] e a medidas
preventivas", comentou à DW Asiem El Difraoui, cientista político
especializado em Oriente Médio.
Para muitos especialistas, a
discriminação e má integração dos muçulmanos à sociedade está na origem
do problema. Cerca de 6% dos belgas são muçulmanos. Segundo apontou um
estudo da Rede Europeia Contra o Racismo, mesmo quando falam a língua
perfeitamente ou são falantes nativos, eles são tratados como
estrangeiros.
A ONG Anistia Internacional também
criticou o governo belga pela falta de esforços para a integração.
Segundo um estudo de 2012, facilitou-se às empresas a recusa de
candidatos a emprego por motivos religiosos. As mulheres muçulmanas que
usavam o véu foram as mais afetadas. A frustração resultante de
situações como essa propicia a radicalização e o recrutamento por grupos
fundamentalistas islâmicos.
Estado bilíngue e descentralizado
Muitos especialistas em segurança
internacional apontam há bastante tempo a Bélgica como o "calcanhar de
Aquiles" da Europa, no que tange à violência islâmica. Os fatores
citados são a grande população muçulmana, estruturas estatais
fragmentadas pelas profundas cisões entre flamengos e valões (de língua
francesa), e um histórico de mercado de armas de fogo (legais e
ilegais).
"A Bélgica ostenta uma posição central no
coração da Europa. É um país pequeno, cuja localização favorece o
movimento de pessoas com intenções hostis", afirma o primeiro-ministro
belga, Charles Michel, insistindo, no entanto, que sua coalizão de
centro-direita está enfrentando o problema.
Na opinião do cientista político El
Difraoui, o conflito interno entre Flandres e Valônia contribui para o
fracasso na luta contra o terrorismo islâmico. "Os belgas estão,
simplesmente, preocupados demais consigo mesmos." Há anos a rivalidade
entre flamengos e valões tem impedido o governo de cuidar dos problemas
internos do país, diz o especialista.
O professor do Centro de Terrorismo e
Contraterrorismo da Universidade de Leiden, Edwin Bakker, também afirma
que a extrema descentralização, que tem sido a resposta da Bélgica às
forças regionais que tentam dividi-la há décadas, enfraquece a reação do
Estado a ameaças como o terrorismo.
"A Bélgica é um Estado federado e isso
sempre é uma vantagem para terroristas. Os diferentes níveis
administrativos travam o fluxo de informações entre os investigadores."
Além disso, como grande fabricante de armas durante muito tempo, a
Bélgica também se tornou um centro de distribuição para o tráfico de
armas a partir dos Bálcãs e de outros locais.
"Em algumas partes de Bruxelas, existem
áreas onde a polícia tem pouca influência, áreas muito segregadas, que
não se sentem parte do Estado belga", acrescenta Bakker. "Embora
vizinhos possam ter visto algo acontecendo, eles não passam a informação
adiante à polícia."
Polícia caótica
É difícil dizer quem seja o responsável
pela segurança da capital da Bélgica, hoje notória como local de origem
de alguns dos terroristas que executaram os atentados do 13 de Novembro
em Paris.
Com cerca de 1,2 milhão de habitantes,
Bruxelas está longe de ser uma das maiores metrópoles da Europa, mas tem
uma estrutura municipal e política extremamente complicada. Críticos do
sistema criticam que esse nó entrava os esforços para melhorar a
segurança e combater o terrorismo.
"Em termos de segurança, Bruxelas é um
exemplo perfeito de verdadeiro caos", afirmou o prefeito de Vilvoorde,
Hans Bonte, à rede de TV RTBF. Sua cidade nos arredores da capital
também já foi apontada como um epicentro de terrorismo, mas tem liderado
esforços para erradicar o problema.
Em vez de uma administração centralizada, Bruxelas tem um total de 19 communes,
extremamente autônomas e que dispõem de seus próprios prefeitos,
vereadores e regras locais. Alguns dos conselhos municipais dessas áreas
contam com até 50 membros.
Aos prefeitos, cabe administrar não
apenas a educação e os bens públicos, mas também manter a segurança em
suas áreas. E muitas vezes as administrações dependem de coalizões
frágeis para se manter no poder. Entre essas prefeituras está a de
Molenbeek, apontada por órgãos de inteligência como local de
concentração de diversos terroristas que atacaram Paris.
Toda a área que compreende as prefeituras
é, em princípio, comandada por uma espécie de primeiro-ministro. Na
prática, ele tem pouco poder, e a questão da segurança não faz parte de
suas atribuições.
Para complicar ainda mais, também existe a
figura de um governador para toda a área, uma função burocrática que
representa os interesses do governo federal na região. Por fim, a
capital ainda tem três comissões para atender a suas comunidades
linguísticas em assuntos como educação e cultura, cada uma com seu
próprio parlamento.
Essa fragmentação também se estende à
polícia local. A cidade não possui um departamento de polícia, mas seis –
todos independentes –, cujas zonas de atuação se estendem por várias
prefeituras. O efetivo policial total da área da capital inclui 5 mil
homens, que não respondem a um comando unificado, e sim a seis colégios
formados pelos prefeitos na área de cada uma das zonas de atuação. Esses
prefeitos também têm interesses que muitas vezes não coincidem entre
si, além de serem rivais no plano federal, pois vários deles também são
deputados.
Há também outros complicadores, como o
fato de a vigilância no interior dos trens de Bruxelas ser uma
atribuição da polícia federal e o policiamento das estações de trem ser
responsabilidade das polícias locais.
Vários políticos já propuseram uma
unificação dos seis departamentos de polícia da capital, mas, também
aqui, a iniciativa esbarra nas divisões do Estado belga. O movimento de
unificação é liderado pelos partidos da região de Flandres, de maioria
flamenga; e os políticos francófonos de Bruxelas são contra a
unificação, por temerem perder sua autonomia regional.
Molenbeek
Todos os problemas da Bélgica parecem se
refletir nesse distrito a oeste de Bruxelas, lar de muitos muçulmanos,
principalmente de famílias oriundas do Marrocos e da Turquia. Desde os
atentados terroristas de 13 de novembro de 2015, o nome Molenbeek é
quase sempre lembrado quando se fala em extremismo islâmico na Europa.
Lá morava Salah Abdeslam, um dos mentores
dos ataques na capital francesa. E também lá ele foi preso pela polícia
belga, na última sexta-feira. Um membro destacado do grupo por trás dos
atentados a trens de Madri, que em 2004 mataram 191 pessoas, era
natural de Marrocos e vivia em Molenbeek.
O distrito bruxelense está relacionado a
dois ataques terroristas na França em 2015. Autoridades de segurança
afirmam que Amedy Coulibaly, responsável por quatro mortes num mercado
judaico em Paris na época do atentado contra o tabloide satírico Charlie Hebdo,
em janeiro, adquiriu armas em Molenbeek. Assim como o homem que foi
dominado antes de conseguir disparar suas armas num trem de alta
velocidade Thalys, que viajava entre Amsterdã e Paris, em agosto.
Um suposto complô para atacar a polícia
belga em janeiro de 2015, evitado com uma operação policial que matou
dois homens na cidade belga de Verviers, tinha conexões com Molenbeek. E
um francês acusado de matar a tiros quatro pessoas no Museu Judaico de
Bruxelas, em 2014, também passou um tempo no distrito.
A prisão de Abdeslam, em 18 de março de
2016, voltou a chamar a atenção para o distrito e as dificuldades da
polícia belga. Depois de quatro meses fugindo, o jovem de 26 anos foi
preso em Molenbeek, a apenas alguns metros da casa de sua família e
praticamente sob o nariz das autoridades belgas.
"Ou Salah Abdeslam foi muito esperto, ou
os serviços belgas foram muito incompetentes – o que é mais provável",
afirmou o deputado francês Alain Marsaud, ex-investigador especializado
em terrorismo.
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