Bangassou poderia ser a garota-propaganda do discurso equivocadamente otimista acerca da “estabilização” e da “normalização” da República Centro-Africana (RCA) que sucedeu as últimas eleições no país. Os poucos prédios coloniais da cidade ainda são marcados por buracos de bala, resquícios da tomada da cidade pela rebelião Séléka em 2013, que motivou a fuga das pessoas. Porém, após quase dois anos de uma ausência quase total, autoridades do Estado estão de volta: um promotor foi restituído em dezembro, assim como um juiz, 30 policiais, serviços de cadastro, serviços sociais e um fiscal de trabalho. Mas esse retorno não significa que tudo esteja novamente em funcionamento, e a cidade de Bangassou representa apenas uma pequena parcela de relativa paz em meio a um entorno altamente instável. Em junho deste ano, o condutor de um comboio claramente identificado de MSF que levava suprimentos de Bangui a Bangassou foi morto em uma emboscada por dois homens armados que vivem de atividades criminais na estrada local. No leste de Bangassou, bandos itinerantes reproduzem o modus operandi do Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês) e aterrorizam vilarejos, roubam plantações e sequestram pessoas. Em decorrência da insegurança, a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) precisou cancelar a campanha de vacinação para crianças que havia sido planejada, apesar das grandes necessidades.
Entretanto, desde as eleições gerais no início deste ano, anuncia-se que a República Centro-Africana está no caminho de recuperação. Nas últimas semanas, picos de violência por todo país vêm diminuindo o entusiasmo; mas, ainda assim, a dita “normalização” levou a uma contínua redução dos orçamentos humanitários a nível nacional. Até hoje, apenas 28% do orçamento de ajuda humanitária necessário para o próximo ano foi garantido, ainda que as necessidades continuem enormes: 850 mil pessoas estão internamente deslocadas ou encontraram refúgio em algum país próximo; 2,3 milhões, ou metade da população do país, dependem de assistência humanitária para sobreviver. As coisas não estão voltando ao normal na RCA. “O que significa ‘normal’ para um país que vive uma crise prolongada há décadas? A fase mais grave da crise pode ter acabado, mas os problemas continuam longe de ser resolvidos”, diz Emmanuel Lampaert, representante de MSF para a RCA.
O mercado das manhãs de segunda-feira em Mbalazime, um vilarejo a 12 quilômetros de Bangassou, leva multidões ao centro de saúde apoiado por MSF localizado logo ao lado. Na entrada, o letreiro traz a mensagem “O CUIDADO É GRATUITO”, e isso faz uma grande diferença: a consulta em postos de saúde da redondeza normalmente custa de 2.500 a 3.000 CFA (entre 3,7 e 6 euros). Pelo mesmo preço é possível comprar uma bacia de arroz, quantidade de alimento básico suficiente para manter uma família por um mês.
Os centros e postos de saúde locais, que enfrentam escassez de estoque e de profissionais, sofrem para oferecer serviços apropriados à população, e as consequências da falta de cuidados de saúde podem ser vistas nos 118 leitos do Hospital Regional de Bangassou, apoiado por MSF. Em seu terceiro dia de trabalho no hospital, o dr. Osmar Sosa Del Toro realizou 12 cirurgias, sendo todas urgentes e a maioria delas de risco, como, por exemplo, o caso de uma mulher que teve o intestino perfurado durante uma cesárea malfeita um mês antes, ou um bebê de seis meses com abcesso infectado na perna esquerda. “Ele recebeu uma injeção em um centro de saúde há uma semana. O procedimento foi malfeito e houve uma grave infecção, o que levou a um choque séptico em uma criança muito nova”, diz o cirurgião. Olhando os registros de admissão na ala pediátrica, podemos ver que esse tipo de infecção é comum por aqui.
Cruzando o pátio, na sala de desnutrição da ala pediátrica, a dra. Ilaria Moneta faz suas rondas. A desnutrição é uma questão crônica. “É estranho, porque na maioria das vezes há alimento nas casas dos pacientes. Porém, é muito difícil para os pais motivar uma criança doente a comer e saber como alimentar os pequenos propriamente. É um caminho perigoso: as crianças ficam doentes, logo não comem, então ficam ainda mais fracas e adoecem novamente”, lamenta a pediatra. Um relatório¹ recente coloca a RCA lado a lado com Chade e Zâmbia como países mais afetados pela desnutrição; mas, no fim do primeiro semestre de 2016, apenas 25% das crianças que sofrem de desnutrição estavam recebendo os devidos cuidados, de acordo com o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês).
No próximo mês, doadores se reunirão em Bruxelas a fim de planejar os próximos passos para apoiar a República Centro-Africana. Até agora, os sinais não são muito encorajadores: devido aos orçamentos decrescentes, algumas ONGs internacionais começaram a reduzir suas atividades no país, ainda que, tanto em Bangassou como em outras partes do território nacional, as necessidades continuem gritantes. “Se a RCA fosse um de nossos pacientes, poderíamos dizer que ela está fora da sala de emergência, mas ainda precisa de terapia intensiva. Dispensá-la agora levaria a consequências trágicas”, diz Emmanuel Lampaert.
Projeto em Bangassou
MSF iniciou seu trabalho em Bangassou no início de 2014, começando suas atividades por meio do apoio ao Hospital Regional Universitário da cidade. MSF está aumentando progressivamente o seu alcance por meio de trabalho com a comunidade e de atividades de prevenção.
Hospital Regional: MSF apoia o hospital de referência de 118 leitos, para o qual a maioria dos centros de saúde encaminha os casos mais graves do distrito de Mbomou (de 206 mil habitantes). É um hospital completo, com alas de pediatria, maternidade, neonatologia, medicina interna e cirurgia, além de contar com sistema de transporte para buscar os casos encaminhados pelos seis centros de saúde do distrito. Atualmente, MSF está construindo mais prédios na instalação, a fim de aumentar a capacidade do hospital.
Centros de Saúde: MSF apoia os centros de saúde de Yongofongo, Mbalazine e Niakari (população total de 32 mil pessoas), oferecendo cuidados primários de saúde gratuitos a todos e treinamento aos profissionais.
Vacinação: em 2015, a cobertura vacinal estava abaixo de 50%. Devido aos recentes picos de violência, o programa regular de vacinação foi interrompido por dois anos, quando quase nenhuma criança foi vacinada pelas campanhas de rotina após o nascimento, deixando a população infantil vulnerável a doenças facilmente evitáveis. Diante disso, MSF lançou uma campanha de vacinação para proteger 220 crianças no distrito contra nove doenças potencialmente mortais: hepatite B, difteria, tétano, coqueluche, poliomielite, gripe hemofílica, sarampo, pneumonia e febre amarela.
Comentários
Postar um comentário